Ermiro Neto - Publicação de biografias sem autorização
Bahia Notícias - Os artigos 20 e 21 do Código Civil são considerados por alguns juristas como inconstitucionais, você concorda com essa linha de pensamento?
Ermiro Neto - Um ponto deve ser dito, os artigos 20 e 21 do Código Civil estabelecem que qualquer tipo de divulgação de escritos, de imagem a respeito de uma pessoa, seja uma biografia, uma matéria jornalística, um filme, somente será possível com a autorização dessa pessoa. Essa é a regra. Então, qual é o problema do artigo 20 e 21? A despeito da existência dessa regra, a Constituição por outro lado consagra uma liberdade ampla de pensamento, de liberdade editorial. Como compatibilizar esse artigo 20 que garante a pessoa à possibilidade de consentir com a divulgação dos escritos a respeito dela com essa liberdade que é conferida pela Constituição? Em face dessa possível incompatibilidade do artigo 20 do Código Civil com a Constituição Federal é que alguns autores, alguns juristas, têm entendido que esse artigo 20 é inconstitucional. Eu, particularmente, não vou nesse sentido, não acho que cheguemos a tanto. O artigo 20 não é inconstitucional. Eu acredito que a forma de compatibilizar é conferir a esses artigos 20 e 21 uma interpretação conforme a Constituição. Mas, como unir essas duas situações? Permitindo a divulgação de escritos de pessoas de notoriedade pública, pessoas que tenham alguma relevância pública como: políticos, artistas, empresários, e que essas biografias possam ser divulgadas sem autorização delas. Eu entendo que é possível compatibilizar o artigo 20 com a Constituição.
EN - Essa ação foi motivada por uma série de decisões judiciais, desde a década de 90, que proibia a divulgação de biografias de pessoas notórias. A gente vem desde essa década com uma série de proibições, espécie de censura mesmo. Garrincha, jogador de futebol, Guimarães Rosa, autor e, mais recentemente, o lutador Anderson Silva teve a biografia proibida por força de uma decisão judicial. Então, a Anel dirigiu ao Supremo Tribunal Federal (STF) buscando uma solução para esse ime. Tenho uma posição a respeito disso. Entendo que existem duas razões jurídicas e uma moral para que o STF declare que esse artigo 20 do Código Civil seja interpretado em conformidade com a Constituição. A primeira razão jurídica é: torna-se necessário assegurar uma ampla liberdade editorial. Não é possível ter liberdade de manifestação de pensamento se para toda biografia, principalmente de pessoas publicas for necessário o consentimento do biografado. A outra razão é: pessoas públicas, pessoas de ampla notoriedade, políticos, empresários têm um campo de privacidade muito menor que pessoas comuns. A vida dessas pessoas se confunde com a história da sociedade, portanto, é de interesse público conhecer a histórias dessas pessoas. A razão moral: a biografia de pessoas públicas constitui importante dado da memória coletiva, então, não tem sentido nenhum estabelecer uma série de biografias chapa branca, ou seja, que só poderiam ser divulgadas com o consentimento do biografado ou de sua família. Acho que existe uma grande possibilidade do STF julgar procedente.
EN - Existem duas situações distintas: pessoas sem notoriedade têm uma margem de defesa da privacidade bem maior, porque não existe o interesse público da biografia de pessoas comuns. O outro lado da balança é: pessoas notórias, públicas, grandes empresários e, sobretudo políticos, despertam o interesse. Temos o direito de saber a história delas, a biografia desses indivíduos não pertence apenas a eles.
BN - A proibição de publicação de biografias como de Garrinha, Roberto Carlos, Anderson Silva no seu entendimento, prejudica a liberdade de expressão, a criatividade e o mercado editorial?
EN - Prejudica sem dúvida. O Brasil é um dos únicos países, em que ainda há discussão a respeito da necessidade do consentimento da pessoa biografada. O Código Civil português, desde a década de 90, estabeleceu que a biografia de pessoas públicas não depende de seu consentimento. Aqui no Brasil, como não há essa disposição expressa do Código Civil vai ser necessário que o STF declare se é possível ou não. De modo que me parece prejudicial, em alguma medida, a liberdade de pensamento e ao mercado editorial. Por exemplo, nos Estados Unidos tem uma tradição larga de liberdade editorial, lá tem o que chamamos de doutrina das posições preferenciais, ou seja, toda vez que houver um conflito de liberdade de manifestação de pensamento de uma pessoa qualquer, esse conflito tem que ser resolvido dando mais prestígio a liberdade editorial que o direito individual. Se houver exageros ela pode buscar indenizações.
BN - Você acredita que essas proibições das biografias têm uma relação com o viés autoritário do Poder Judiciário?
EN - Para responder essa questão, é necessário entender que a concessão de liberdade editorial e de pensamento não confere às editoras e aos jornalistas, também, liberdade de falar o que bem quiser, de retratar a pessoa biografada de maneira jocosa, de maneira que lhe ofenda. Por outro lado, se isso ocorre , existem instrumentos judiciais para buscar indenizações, reparações. O que não pode acontecer com relação às pessoas públicas é existir um entendimento no judiciário que será sempre possível proibir. Nesse caso, me parece autoritário a proibição desses escritos. Existem outros instrumentos, como por exemplo, no caso de indenizações, que iriam proteger e tutelar da mesma forma esses direitos.